Apresentação
Este trabalho pretende apresentar algumas reflexões suscitadas
pela pesquisa que desenvolvemos desde 1987 sobre as movimentos sociais
e outros formatos da participação e gestão social,
tendo como constituinte aspectos do cenário social e político
do Brasil.
Para organizar a exposição, o item 1 introduz, de forma
genérica e parcial, algumas noções sobre o conceito
de movimento social; o item 2 apresenta dados sobre as teses e dissertações
produzidas na USP e na UNICAMP, relacionando-os ao cenário social
e político brasileiro; o item 3 apresenta uma reflexão sobre
a possibilidade de os movimentos sociais e outros formatos da sociedade
civil organizada estarem se constituindo em espaços pedagógicos
privilegiados para a ampliação e aprofundamento da democracia
e da cidadania neste país.
1. Movimento social
Movimento social é um fenômeno de diversas facetas, que
acompanha a história das diferentes sociedades - portanto, é
mais apropriado tratar (no plural) de movimentos sociais relacionando-os
ao cenário social do qual emergem-; e é também objeto
de análise, está inserido num campo teórico que o
descola, ao menos parcialmente, da realidade diversificada e, desta forma,
é possível ultrapassar as singularidades e particularidades
de cada movimento social e abranger, num mesmo conceito, fenômenos
empíricos muito variados.
Neste sentido, o conceito de movimento social compreende tanto os movimentos
sociais de caráter histórico, como os “da Antigüidade
e da Idade Média: revolta de escravos, heresias e seitas sociais,
levantes camponeses e outros” como os movimentos milenários do século
XIX (HOBSBAWN, 1978); os motins rurais do século XVIII (RUDÉ,
1991); os movimentos socialista e trabalhista pós-Revolução
Industrial (HOBSBAWN, 1981, 1987; THOMPSON, 1987; CARONE, 1979); os movimentos
de bairro ou populares urbanos, já na segunda metade de nosso século,
acentuadamente após 1960 (CASTELLS, 1977, 1983; SINGER, 1983; GOHN,
1985, 1991; CAMACHO, 1987; MOISÉS, 1978; BOSCHI, 1987; KOWARICK,
1988); os movimentos brasileiros (rurais) destas últimas décadas
e anteriores (GRZYBOWSK, 1987; MARTINS, 1989; MEDEIROS, 1989); os denominados
novos movimentos sociais, de mulheres, pacifistas, ecológicos, étnicos,
etc., das últimas décadas do século XX (SCHERER -WARREN
& KRISCHKE, 1987; OFFE, 1993). Por estarem presentes, de diversas formas,
no decorrer da história de diferentes sociedades, pôde-se
afirmar que os movimentos sociais não são fenômenos
extravagantes ou excepcionais, ao contrário, são centrais,
estão no cerne da vida social.
Os temas e as questões que envolvem o estudo sobre movimentos
social ocupam um lugar privilegiado na teoria sociológica clássica
e contemporânea. Basta lembrar que um dos aspectos essenciais na
Sociologia, desde sua origem, é a análise das manifestações
coletivas, sob forma de movimentos de massa, das revoltas, enfim, é
a análise da multidão 1. Cada corrente de
pensamento sociológico procura compreender, explicar, exorcizar,
dinamizar ou controlar a multidão _este fenômeno que “impressiona,
desafia, assusta ou entusiasma” (IANNI, 1988, p.22).
Tais correntes teóricas apresentam uma variedade de conceitos
sobre movimento social que quase nunca são comparáveis entre
si, seja pelos próprios antagonismos e diferenças entre as
correntes, seja porque os movimentos sociais se constituem objetos que
envolvem interesses e paixões (MELUCCI, 1997, p.12). Assim “como
a maioria das noções das ciências sociais, a de movimento
social não descreve parte da realidade, mas é um elemento
de um modo específico de construir a realidade social” (RENON, 1996,
p.500) (grifo nosso).
2. Movimentos sociais e cenário sócio-político
brasileiro: a pesquisa sobre teses e dissertações produzidas
na USP e Unicamp.
As pesquisas sobre movimento social estão, em grande parte, vinculadas
ao surgimento e ressurgimento, em cena pública, destes sempre “novos
personagens” (SADER, 1987). No Brasil, o período de 1970 e 1995
são bastante significativos para o campo teórico dos movimentos
sociais sob dois aspectos principais: a) coincide com a época de
consolidação ou implantação da quase totalidade
dos programas de pós-graduação nas universidades brasileiras;
b) foi a época em que ocorreu um número significativo de
movimentos sociais, em todo o Brasil.
Entre 1970 e 1995, a USP e a UNICAMP produziram 322 teses e dissertações
sobre movimentos sociais (206 e 116 pesquisas, respectivamente)2,
considerando os seguintes tipos de movimentos: dos trabalhadores; popular;
novos; messiânicos e ligados a seitas e a religiões; estudantis;
político partidários; de elites econômicas. O interesse
pelo tema é perene, o número absolutos de trabalhos é
quase sempre crescente e a maior parte da produção (55,9%)
está concentrada nos anos 90. É interessante notar que, ao
longo do período, além de o número de trabalhos sobre
movimentos sociais ter se mantido relativamente significativo, houve, também,
um aumento da diversidade de tipos de movimentos sobre os quais as pesquisas
versavam.
Na USP e na UNICAMP o maior número de teses e dissertações
é sobre movimento dos trabalhadores (são 150 pesquisas, destes
92 foram concluídos na USP e 58 na UNICAMP), seguidos, em ordem
decrescente, por 64 pesquisas sobre movimento popular (44 - USP e 20 -UNICAMP);
53 trabalhos sobre novos movimentos sociais (37 e 16, respectivamente);
31 sobre movimento messiânico e ligado à religião (22;
9); 15 sobre movimento político-partidário (7; 8); 5 estudantil
(2; 3) e; 4 teses e dissertações sobre movimento de elites
econômicas (2 na USP e 2 na UNICAMP).3
Podemos fazer um exercício interessante ao destacar esta produção
teórica das Universidades em relação a aspectos do
cenário social e político do período:
Década de 70. Década dos governos militares de Médice
(1969-1974), Geisel (1974-1979) e Figueiredo (1979-1985), foi um dos momentos
de maior centralização e repressão por parte do Estado.
Este período também preparou o caminho para a abertura, obra
das lutas populares, de elites progressistas e da própria cúpula
do governo de então. O processo de liberalização ocorreu
como exigência da sociedade civil e com o planejamento do governo
militar. Nestes anos ocorreram os movimentos populares e trabalhistas que
simbolizam a luta pela reconquista da cidadania. Os movimentos populares
(especialmente até meados da década de 80) surgiram com características
novas, propondo uma relação menos clientelística com
as agências do Estado e, por isso mesmo, desafiando a capacidade
deste de atender ou incorporar as reivindicações, vindo a
provocar o aumento das fissuras no sistema político e econômico
de então. Tais movimentos foram organizados em torno, principalmente,
da ala progressista da Igreja Católica (ligada à Teologia
da Libertação e atuando nas Comunidades Eclesiais de Base-CEBs).
Dentre eles destacamos o Movimento do Custo de Vida (MCV, mudando, depois,
para MCC - Movimento Contra a Carestia), iniciado em 1974 e cujo pico mobilizador
foi em 1978 e, neste mesmo ano, o movimento operário passou a ser
conhecido dentro e fora do país, a partir das greves no ABC paulista
(DOIMO, 1993).
Na USP e na UNICAMP parte das teses e dissertações sobre
o movimentos sociais foram realizadas no “calor da hora”, uma vez que,
a maioria destas pesquisas, concluídas nos anos 70, abordaram os
movimentos de trabalhadores e o popular.
Cabe destacar que os trabalhos sobre movimento popular discorreram
sobre as demandas por equipamentos escolares (especificamente creches e
escolas de 1o. grau) habitação; transporte; saúde;
equipamentos e serviços de consumo coletivo.
Década de 80. Um marco importante da década é
o movimento das Diretas-Já (1984), para que fosse aprovada a emenda
Dante de Oliveira, que versava sobre eleições diretas para
presidente. Apesar do movimento, houve a passagem indireta do governo militar
para o civil. Somente em 1989, 25 anos depois de instalado o regime militar,
a população elegeu diretamente o Presidente da República.
Em 1988, após um processo constituinte que volta a mobilizar setores
organizados da sociedade, é elaborada a nova Constituição.
Nela estão inscritos avanços consideráveis em relação
aos direitos sociais e políticos. Entretanto, para o Brasil e para
um grande número de países, esta década foi marcada
“por forte recessão econômica, empobrecimento do Estado e
de amplas camadas da população” (AVELAR, 1994, p.53). Inclusive
no mundo capitalista desenvolvido, problemas como pobreza, desemprego em
massa, miséria e instabilidade, que pareciam ter sido eliminados
há uma geração, reapareceram depois de 1973 e, “na
década de 80 muitos dos países mais ricos e desenvolvidos
se viram outra vez acostumando-se com a visão diária de mendigos
nas ruas, e mesmo com o espetáculo mais chocante de desabrigados
protegendo-se em vãos de portas e caixas de papelão...” (HOBSBAWN,
1995, p.396-397).
Neste período, a maior parte das teses e dissertações
abordaram os movimentos sociais populares e os dos trabalhadores, no entanto,
começa a aparecer de forma crescente as pesquisas sobre os novos
movimentos sociais e os movimentos messiânicos e ligados a religião.
Em particular, as teses e as dissertações sobre novos movimentos
sociais são mais freqüentes a partir da segunda metade dos
anos 80 e grande parte delas é defendida nos anos 90.
Anos 90. Apesar de a década anterior ter sido “vivida sob o
signo da esperança democrática, encerrou-se, no entanto,
com o espetáculo de uma pobreza talvez jamais vista em nossa história
republicana. Entramos nos anos 90 vivendo o paradoxo de uma democracia
consolidada nas suas instituições e nas regras formais do
jogo político, mas que convive cotidianamente com a violência,
a violação dos direitos humanos e a incivilidade nas relações
sociais.” (TELLES, 1994, p.7). Neste quadro, a alternativa que mais obteve
repercussão, junto a parte da população e à
elite política, foi a propagada pelos ideólogos do neoliberalismo
4.
Na Brasil dos anos 90 destacam-se dois momentos importantes na perspectiva
da participação social e política: em 1992, a deposição
do Presidente Collor, acusado de corrupção. Em 1994, a eleição
para a Presidência, tendo à frente da disputa os candidatos
Luís InácioLula da Silva (Partido dos Trabalhadores) e Fernando
Henrique Cardoso (Partido Social Democrata Brasileiro), o qual vence a
eleição.
Neste período, os movimentos populares e dos trabalhadores,
principalmente, passam por um período de menor expressividade pública
5. T~em maior visibilidade pública e na mídia,
os novos movimentos sociais, tais como os que se movem nas questões
de gênero, etárias, étnicas e do meio ambiente, (relacionados
à diversidade identitária, cultural, e biológica e,
assim, aos chamdos direitos de 3ª e 4ª geração).
No Brasil, o Movimento pelo Impeachment, Movimento da Cidadania contra
a Fome, Movimento pela Ética na Política, Movimento Viva
Rio e Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, por exemplo, que
ocorrem nesta década, inscrevem-se no rol destes novos movimentos
com a característica peculiar de que, em nossa realidade, não
é possível deixar de acrescentar às novas demandas,
às lutas sociais por novos direitos, as reivindicações
de direitos sociais tradicionais: abrigo, comida, saúde e educação.
Também na UNICAMP e na USP as teses e dissertações
que se destacam numericamente nos anos 90 são as que discorrem sobre
os novos movimentos sociais, e, é preciso lembrar, as poucas pesquisas
sobre o movimento estudantil foram concluídas, principalmente nestes
últimos anos do período abordado 6. As teses
e dissertações sobre os novos movimentos sociais, em grande
parte, (56,6% do total das pesquisas sobre este tipo de movimento) trataram
do movimento de gênero (de mulheres, principalmente), seguido do
étnico (22,6% de seu total abordando o movimento negro) e do ambientalista
(13,2%).
As pesquisas sobre movimentos sociais de diferentes tipos, com a crescente
diversidade ao longo do período, pode indicar que estes trabalhos
acompanharam os desafios colocados pelas mudanças conjunturais da
sociedade brasileira, entre 1970 e 1995.
3. Movimentos sociais: espaço pedagógico para a cidadania
Se tomarmos os anos partir da década de 1970, observamos que
diferentes protagonistas, atores sociais, sujeitos coletivos e políticos,
estiveram presentes no cenário nacional brasileiro, através
dos movimentos sociais pela redemocratização do país
e pela consolidação e garantia de direitos, tais como os
movimentos de trabalhadores urbanos e rurais, os movimentos populares,
de gênero, étnicos, de meninos e meninas que vivem nas ruas,
movimento pela cidadania e ética na política, movimentos
ecológico e ambientalista. Mais recentemente, tais atores sociais
também estão articulados em redes, em Foruns e por meio de
participações institucionalizadas em Organizações
não Governamentais, em Conselhos Gestores dos municípios,
estados e federação e, nas experiências de orçamento
participativo, entre outras formas de organização, participação
e gestão social.
Estas configurações da sociedade civil organizada, têm
expressado, desafiado e colocado propostas que se contrapõem ao
processo de mundialização em curso encabeçado pela
globalização do capital 7, influindo ou
demandando influir na formulação e gestão das políticas
públicas.
Nesta perspectiva, é possível afirmar que as diversas
expressões da participação social dos sujeitos e atores
coletivos, na contemporaneidade brasileira, têm ampliado e ocupado
os “espaços públicos de se fazer política”. Consideramos,
assim, que as experiências ou experimentos de participação
social na atualidade têm trazido à política um novo
significado: a política entendida como forma de sociabilidade (TELLES,
2000), e têm provocado mudanças, inclusive, no sentido da
democracia, desenvolvendo “a idéia de que a democracia não
é só um regime político, mas é um regime de
vida” (RIBEIRO, 2000), . tem trazido
Se ainda é válido afirmar com WEFFORT (1985) que “a desgraça
de quem não se interessa por política é ser governado
pelos que se interessam”, então, esta ampliação do
espaço público e a socialização da política
- possibilitada pelos movimentos sociais entre outras formas de participação
social -, pode provocar o adensamento e enraizamento da democracia neste
país.
Isto têm um significado pedagógico de grande relevância,
uma vez que se opõe ao secular aprendizado de subordinação
da população brasileira que promove a noção
de que a política é coisa de técnicos-especialistas
(NOGUEIRA, 2001) ou de políticos profissionais.
4. Referências
AVELAR, L. Mudanças Estruturais, Crise Política e Eleições.
São Paulo em Perspectiva Revista SEADE, 8 (2): abr-jun, 1994.
BOSCHI, R. R. A Arte da Associação Política de
Base e Democracia no Brasil. Rio de Janeiro, Vértice, 1987.
CAMACHO, D. Movimentos sociais, algumas discussões conceituais.
In: SCHERER-WARREN, I. & KRISCHKE, P. (org.)- Uma Revolução
no Cotidiano? Os novos movimentos sociais na América Latina. São
Paulo, Brasiliense, 1987.
CARONE, E. Movimento Operário no Brasil. São Paulo, Difel,
1979.
CASTELLS, M. The city and the grassroots. California, Ed. University
of California Press, 1983.
COUTINHO, C. N. Contra a Corrente: ensaio sobre democracia e socialismo.
São Paulo, 2002.
_____________________________
1 “A multidão surge na sociedade
civil, ubano-industrial, burguesa, capitalista. Aparece nas manifestações
de camponeses, operários, populares, desempregados, miseráveis,
fanáticos. Desde os começos da sociedade nacional, quando
se rompem as relações, os processos e as estruturas que organizam
o feudo, o grêmio, o convento, a aldeia, o vilarejo, desde então
ela irrompe na sociedade, com a sociedade. Nos campos e cidades, nas casas
de negócios e fábricas, nas ruas e praças, ela se
torna uma realidade viva, forte, surpreendente, assustadora, deslumbrante.(...)
São muitos os estudos que registram, descrevem
ou interpretam os acontecimentos: protestos, greves, revoltas e revoluções;
banditismo social e messianismo; movimento social e partidos políticos,
jacobinismo, blanquismo, anarquismo, socialimo e comunismo. Todos estão
atravessados pela presença da multidão, plebe, turba, malta,
patuléia, ralé, massas trabalhadoras, classes populares,
coletividades em busca da cidadania, povo em luta pela conquista de diretos
políticos e sociais.” (IANNI, 1988, p. 22,23)
2 Este trabalhos foram realizados especialmente,
porém, não exclusivamente, na área de Ciências
Humanas. Na USP (campus da cidade de São Paulo) foram realizados
na: Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Escola
de Comunicação e Artes (ECA), Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo (FAU), Faculdade de Educação (FE), Instituto de
Psicologia (IP), Escola Polítécnica e Faculdade de Saúde
Pública. Na UNICAMP: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
(IFCH), Faculdade de Educação (FE), Instituto de Economia
(IE), Instituto de Artes (IA)e Faculdade de Ciências Médicas
(FCM).
3 Os números e resumos dos trabalhos
pesquisados estão expostos na tese do doutorado “Movimentos sociais
na Academia; Um olhar sobre as Teses e Dissertações produzidas
na UNICAMP e USP entre 1970 e 1995”. Apresentá-los aqui iria comprometer
a fluência do texto e demandaria um número de páginas
incompatível com a proposta de um artigo.
4 Ver, por exemplo: SADER (1995), DRAIBE
(1993).
5 O movimento no campo vai contra esta
tendência e, com o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) à
frente, pode ser considerado o que mais cresceu em força política
nos anos 90
6 Uma possível compreensão
sobre o número pouco expressivo de pesquisas sobre movimento estudantil
estaria centrada no cenário social e político dos anos 70
a 1995, no qual os pesquisadores, assim como os próprios movimentos
sociais, priorizaram a luta pela democratização e pela reconquista
da cidadania. Lutas estas protagonizadas principalmente pelos movimentos
de trabalhadores e populares, porém, não raro, com a solidariedade
participativa do movimento estudantil e de outros segmentos da população.
Ver, por exemplo: MARTINS FILHO (1987).
7 Globalização esta, que
extermina, abafa e se apropria de bens culturais, recursos materiais locais
e regionais.
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