FFCHLA - Mestrado em Educação e Curso de Pedagogia
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PEDAGOGIA E LETRAMENTO:
questões para o ensino da língua materna

Maria Alice A.S. Descardeci, Ph.D
maria.descardeci@utp.br
Mestrado em Educação
Universidade Tuiuti do Paraná


Há pessoas que sabem cantar ou tocar ‘de ouvido’,
Mas não sabem ler as pautas. Pelo contrário,
a maioria das pessoas que aprende a escrita musical
não consegue de início usá-la de modo a produzir
uma melodia coerente; após terem aprendido a escrita,
terão de aprender a construir uma coerência musical” 
Donald Schön
Breve Histórico e Estado da Arte

 Histórico

  Os estudos do letramento tiveram início nos Estados Unidos, pouco depois da Segunda Guerra Mundial. Neste país, no Canadá, assim como em vários países da Europa, como França, Bélgica e Inglaterra, começou-se a perceber que, embora tidos como alfabetizados, indivíduos jovens e adultos não conseguiam lidar satisfatoriamente com as demandas sociais de leitura e escrita do dia-a-dia. Os dados estatísticos que esses países possuíam sobre analfabetismo não correspondiam à situação real de analfabetismo entre a população. Uma pesquisa recente mostra, na Inglaterra, que 13% de adultos na faixa dos 23 anos de idade afirmam ter dificuldades para ler e/ou escrever.  Na Bélgica, em 1983, estimou-se o número de analfabetos na casa de cem mil indivíduos adultos. No Canadá, ainda na década de 1980, o número de analfabetos foi estimado em 24%, sendo 28% em Quebec. A França, que sempre teve o sucesso de seu sistema de ensino reconhecido mundialmente, registrou, na mesma época, o número alarmente de 9% de analfabetos entre sua população adulta (Stercq, 1993). 
 No Brasil, os estudos do letramento iniciaram-se mais efetivamente na segunda metade da década de 1980. A área do conhecimento pioneira nesses estudos foi a Lingüística Aplicada. Hoje, contudo, letramento é assunto de debate em diversas outras áreas, como Educação, Antropologia, História e Sociologia, para citarmos apenas algumas. Seguindo as tradições Americana e Européia, pesquisadores no Brasil começam a perceber que, embora escolarizadas, as pessoas não sabem fazer uso de seu conhecimento de leitura e escrita para comunicarem-se com sucesso em suas interações sociais, pessoais e profissionais. Assim, o Brasil entra na discussão internacional, incluindo, para tanto, um item vocabular novo em seu léxico: a palavra letramento (ainda não dicionarizada), cunhada, no Brasil, em 1986 (Kleiman, 1995). 
 Estado da Arte 
 Internacionalmente, os primeiros estudos sobre o impacto social da escrita voltavam-se para a comparação valorativa das modalidades falada e escrita de uma língua, apontando, na grande maioria das vezes, para a superioridade cultural dos povos que dominavam o sistema escrito. Como representativos desse momento há os estudos de Goody & Watt (1963), Havelock (1963) e Ong (1967). Tais autores conferem à escrita o enorme poder de promover a evolução social: desde a economia, a cultura e a visão de mundo de uma sociedade, até o incremento das habilidades cognitivas de cada sujeito individualmente. 
 O fim da década de 1970 e o início da década de 1980 marcaram uma mudança nas tendências dos trabalhos sobre a escrita. Scribner & Cole (1981) pesquisam uma comunidade que convive com três escritas diferentes: uma utilizada no ambiente doméstico; outra utilizada para fins religiosos; e uma terceira utilizada para assuntos comerciais e governamentais. A conclusão a que esses autores chegaram foi de que há fatores sociais, além dos psicológicos, que interferem no desempenho de atividades cognitivas. Surge, então, a partir desse estudo, uma nova perspectiva de análise nas futuras pesquisas. Estas buscarão examinar sob o ponto de vista social as questões que envolvem o ensino/aprendizagem e o uso da língua. Dentro desse mesmo enfoque temos autores como: Scollon & Scollon (1981), Heath (1983), Street (1984), tendo esses dois últimos um ponto de vista antropológico. 
 No início dos anos de 1990, os estudos do letramento tendem a se posicionar dentro de um enfoque ideológico (já contemplado nos escritos de Street, acima citado). Gee (1990), por exemplo, afirma que “qualquer visão de letramento é essencialmente política (no sentido de que envolve relações de ordem e poder entre as pessoas)” (p. 27). 
 No Brasil, o encaminhamento dos estudos de letramento teve praticamente a mesma seqüência, sendo que aqueles comparativos da oralidade e da escrita vieram pelo menos uma década depois. As demais tendências, no entanto, ocorreram contemporaneamente às discussões no âmbito internacional. 
 O mais significativo dos estudos do letramento no Brasil é, sem dúvidas, o de Paulo Freire, cuja extensa obra é um esforço constante em fazer com que, ao se alfabetizar, o indivíduo conquiste também sua cidadania. Outros trabalhos incluem: Kato (1986), Tfouni (1986, 1995), Kleiman (1995), para citar apenas alguns, e a pesquisa pioneira sobre letramento no local de trabalho, de Descardeci (1992). Universidades de todo o Brasil, com predominância nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás e Rio Grande do Sul, viram intensificados os interesses de pesquisa na área do letramento a partir do ano de 1990, sendo vários programas nas áreas de Letras, Lingüística Aplicada e Educação responsáveis pelo desenvolvimento dessas pesquisas. 
Letramento: questões e definições 
 Os estudos do letramento preocupam-se com usos e funções sociais da leitura e da escrita. Com estes, o enfoque da pesquisa em língua materna deixa de preocupar-se apenas com as questões sobre ensino-aprendizagem no contexto escolar, e vai para além dos muros da escola, para a sociedade, onde as pessoas precisam desenvolver os conhecimentos adquiridos na instituição escolar em seus relacionamentos pessoais. A partir desse enfoque, começa-se a questionar a formação do professor alfabetizador e do professor de língua materna enquanto agentes de letramento na comunidade. Para ensinar sobre práticas de letramento, estes precisam estar familiarizados com as práticas prestigiadas de uso da língua, precisam ser letrados. 
 Que significado tem a palavra letramento? De onde ela surgiu e qual a sua finalidade? O que há de novo na teoria sobre e na prática da linguagem que apela para a adição de um termo ao nosso vocabulário? O que é ser um sujeito letrado? 
 A palavra letramento surgiu para nomear a busca de se registrar usos e funções da modalidade escrita em processos sociais de comunicação. Diferentes comunidades podem ter diferentes práticas de letramento. O termo difere-se de alfabetização uma vez que esta refere-se ao processo de ensino e aprendizagem do código escrito. Os usos feitos da leitura e da escrita são socialmente determinados, e portanto têm valor e significado específicos para cada comunidade em específico (Street, op. cit.). Sendo assim, o domínio do código escrito é algo que se espera em todas as comunidades nas quais os indivíduos sejam reconhecidos como alfabetizados, enquanto as práticas de letramento podem variar de comunidade para comunidade, e até mesmo de grupos sociais para grupos sociais dentro de uma mesma comunidade. As pessoas podem ser mais familiares com certas práticas de letramento do que com outras, dependendo do engajamento delas naquela prática social específica. Em contrapartida, as pessoas não podem ser mais_ ou menos_  alfabetizadas. Elas sabem, ou não sabem, ler e escrever. Essas noções não são facilmente aceitas quando temos uma realidade social na qual há indivíduos que apenas sabem assinar o próprio nome, outros que são capazes de ler e produzir pequenos textos, outros ainda que têm o hábito de ler jornal, e outros que usam o código escrito como ferramenta essencial para suas interações diárias, seja no trabalho, na igreja, ou em qualquer outro domínio social. 
 Soares (2001, pp. 31 e 39) elabora definições bem claras de alfabetizar, alfabetização e letramento. 

        Ø Alfabetizar é “ensinar a ler e a escrever, é tornar o indivíduo capaz de ler e escrever”. 
        Ø Alfabetização é “a ação de alfabetizar”. 
        Ø Letramento é “o estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como conseqüência de ter-se apropriado da escrita e de suas práticas sociais”
Afinal, o que é ser alfabetizado e como se define um sujeito letrado? Deixando de lado os interesses político-ideológicos que subjazem às definições dessas duas expressões, definirei alfabetizado como sendo o conhecedor do código escrito. Aquele que passou pelo processo de aprendizagem da leitura e da escrita é um indivíduo alfabetizado. Quanto à definição de ser letrado, refere-se à capacidade do indivíduo de usar o código escrito para interagir em sua comunidade, quando nesta existem demandas de letramento. Como foi apontado anteriormente neste texto, as demandas sociais de letramento podem variar de comunidade para comunidade, e até dentro de uma mesma comunidade. Elas incluem dentre outras, a leitura de placas, cartazes e painéis, participação em abaixo-assinados, lista de compras, elaboração de cartas e bilhetes, anotação de recados e avisos, etc. Tais demandas podem advir do local de trabalho, da igreja, do comércio, da prefeitura, da escola, do centro comunitário, etc. Sendo assim, letrado é o indivíduo que, ao necessitar, é capaz de fazer uso do código escrito (e de todas as habilidades cognitivas que a aquisição da escrita propicia) para responder às demandas de letramento de seu meio social (de leitura, de escrita e de compreensão/interpretação). 
 Apresentarei abaixo alguns exemplos de problemas referentes ao letramento. São pequenos textos advindos de situações reais de comunicação no ambiente de trabalho. Estes foram, na maioria das vezes, produzidos por indivíduos altamente escolarizados, como gerentes, supervisores e executivos, e inscritos em um concurso promovido por uma revista norte-americana que pedia mensagens reais estranhas do local de trabalho de seus leitores. 
  1.  “A partir de amanhã, os empregados somente poderão acessar o prédio usando cartões de segurança individuais. As fotografias serão tiradas na próxima quarta-feira, e os empregados receberão seus cartões em duas semanas” (Microsoft, Redmond,WA)
  2.  “Precisamos de uma lista de problemas específicos desconhecidos que iremos encontrar” (Lykes Lines Shipping)
  3.  “E-mail não deve ser usado para passar informações ou dados, mas só para negócios da empresa” (gerente de contabilidade, Electric Boat Company)
  4.  “Este projeto é tão importante, que não podemos deixar coisas mais importantes interferirem nele” (gerente de publicidade e marketing, United Parcel Service)
Perfeitamente corretos no que tange à estrutura gramatical e ortografia, esses exemplos deixam claramente evidente a necessidade de se trabalhar o uso da linguagem a um nível acima da alfabetização: ao nível do letramento

Os mitos sobre o letramento

Dado o crescente interesse de pesquisa sobre usos e funções sociais da modalidade escrita, a definição de letramento foi estendida para várias áreas do conhecimento, tendo surgido então expressões tais como letramento acadêmico, letramento funcional, letramento visual, letramento cultural, e assim por diante (Descardeci, 1997). Segundo essas noções, um indivíduo poderia ser letrado em computação, letrado em cinema, letrado em música, etc. O problema com essas amplas definições é que, por um lado, perde-se a essência do significado da palavra; e por outro, abre-se espaço para usos discriminatórios do termo. De uma definição de sujeito letrado como sendo aquele que faz uso do código escrito para interagir socialmente, passa-se a uma definição de sujeito letrado como aquele que seja “expert” em uma área qualquer do conhecimento, como se o envolvimento com outras práticas passasse necessariamente pelo domínio do código escrito. Acredito que todos já tenhamos conhecido pelo menos uma pessoa que seja “expert” em sua área de conhecimento, sem contudo ser conhecedora do código escrito. 
Tornar-se letrado é um processo que se inicia logo após a aprendizagem do código escrito, e que não se encerra, desde que o indivíduo se encontre exposto a demandas de letramento. Tornar-se letrado é um processo no qual o indivíduo se engaja mais, ou menos, de acordo com seu papel, seus interesses e suas necessidades na comunidade em que vive. Contudo, o fato de um indivíduo não necessitar do código escrito para interagir socialmente não significa de maneira alguma que ele seja menos inteligente do que aquele que faz uso da escrita, ou que ele seja incapaz de funcionar satisfatoriamente em seu meio social. Este é um dos mitos (Descardeci, 2001) sobre letramento predominantes no senso comum: o de se pensar que aquele que não faz uso do código escrito para se comunicar seja incapaz de raciocinar logicamente, de inferir informações ou de se expressar oralmente
Outro mito muito comum, que de certa forma decorre do descrito acima, é o de se pensar que o adulto iletrado deva ser tratado como criança, porque ele pensa como criança. O exemplo mais marcante desse mito encontra-se nos livros didáticos para ensino de adultos. Estes, em sua maioria, reproduzem o modelo e a linguagem daqueles usados em cursos regulares de alfabetização e pós-alfabetização. Há que se considerar, contudo, que adultos que retornam à escola, ou que a procuram pela primeira vez, vêm de uma experiência de vida completamente diferente daquela das crianças, bem como com objetivos completamente distintos. O uso que eles fazem da linguagem em suas vidas também difere daquele das crianças. O modo como eles representam o mundo também é diferente. 
Um terceiro mito sobre o letramento refere-se à crença de que a modalidade escrita de representação da mensagem seja superior a outras modalidades. É tendência comum em sociedades letradas se atribuir maior relevância à escrita do que a outros modos de representação. Contudo, o código escrito não pode ser entendido senão em relação com outros modos de representação da mensagem, tais como imagens, “layout” e recursos tipográficos (formato das letras). A escrita é um modo de representação que se combina com outros na composição da mensagem. Se pensarmos, por exemplo, em um cartão de Natal, vários modos de representação atuam conjuntamente para comunicarem a mensagem que este se propõe a comunicar: o formato do cartão, o conteúdo do texto escrito, a cor e o formato das letras, as imagens desenhadas, e até mesmo a cor diferente do envelope (que alguns cartões possuem), todos esses recursos são modos diferentes de representação combinados em uma mesma mensagem. Não se pode dizer, por exemplo, que o código escrito que aparece na mensagem seja mais relevante do que a ilustração, ou mesmo que a mensagem seria a mesma se o formato e a cor das letras fosse outro. É nesse sentido que se argumenta hoje em dia contra o mito da superioridade do modo escrito sobre outros modos de representação da mensagem impressa. 
 Há que se ressaltar, contudo, que, como vivemos em sociedades letradas (umas mais do que outras), o domínio do código escrito faz-se necessário em vários contextos, isto é, para funcionarmos satisfatoriamente em variadas práticas sociais. São cada vez mais comuns as situações nas quais temos que preencher um formulário, ou mesmo um cupom para participarmos de um sorteio no supermercado; que temos que ler um folheto explicativo de uma doença e como preveni-la; e assim por diante. Portanto, é impossível negarmos que, de uma forma ou de outra, o código escrito perpassa nossas vidas de alguma maneira. Mas tem se tornado cada vez mais evidente os processos sociais de interação servem-se de uma combinação de modos de representação para a composição dos mais variados textos que passam por nossas mãos no dia-a-dia, integrando o conteúdo da mensagem. 

Conclusão

O ensino sistematizado de Língua Portuguesa, tanto nas escolas de ensino fundamental e médio, como nos cursos de formação de professores na área, tem contribuído para a perpetuação dos mitos sobre o letramento apontados acima, ainda que em menor escala nos últimos dez anos ou um pouco mais. As teorias da semiótica social (Kress, 1993;  e Kress & van Leeuwen, 1996) e da análise crítica do discurso (Fairclough, 1992), que apontam para o re-pensar a composição de um texto em relação a outras formas de representação disponíveis além da escrita, são recentes, e poderiam contribuir para as mudanças necessárias nesse cenário. 
Como todo processo, esse novo enfoque nos usos e funções sociais da escrita, bem como do papel do código escrito na formação do cidadão, requer tempo para começar a fazer parte das práticas envolvidas no ensino/aprendizagem de Língua Portuguesa. Devemos, contudo, repensar, enquanto educadores, o respeito a outros saberes, para que não participemos da exclusão social de indivíduos que, à sua maneira, têm a contribuir para a nossa coletividade, mesmo à margem do mundo letrado. 

Referências

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